30/09/2007

Vida de pena

Uma pena cai e, riscando o ar lenta e elegantemente, volteia, uma e outra vez, acabando por entrar por uma janela semi-aberta. Lá dentro, um casal discute. Erguem a voz, enfrentam-se com fervor, vociferam como fazem as pessoas quando já perderam a cabeça, ou seja, com palavras que julgaram nunca ser capazes de proferir e que ferem bem no fundo do alma. A pena, estendida sobre um tapete surrado a tudo assiste, inclusivé ao golpe impetuoso da mão dele na cara dela. Os olhos dele, vermelhos, vibrantes, reparam na evidência da sua extrema irracionalidade e ele sai explodindo com enorme estrondo a porta na parede. Com a correnteza de ar que se forma, a pena sobe no ar e volta a voar e, antes de deixar aquele quarto pela mesma janela por onde entrou, ainda vê a mulher cair num pranto de lágrimas e soluços nervosos. E a pena, volteia, uma e outra vez, até cair na soleira de uma porta que acaba de se abrir. Lá dentro uma senhora recebe o carteiro que lhe deixa um pacote e um molho de cartas. Tudo ela larga no chão, assim que o carteiro lhe vira as costas, excepto uma preciosa carta, com um selo bonito, vistoso e proveniência do Brasil. “Meu José!”, exclama olhando a carta, enternecida, e aperta o sobrescrito fortemente contra o peito, as lágrimas começando a assomar-lhe aos olhos. A pena sensibilizada, de tão coração-mole que é, tem os olhos postos e concentrados naquela senhora quando ela, sem lhe notar a presença, lhe fecha a porta e a coloca de novo, no ar, em movimento, volteando uma e uma vez mais, à espera de saber o que lhe reserva o mundo a seguir.

Sem comentários:

© Gonçalo Coelho