24/09/2006

A história de um segredo e um perdão ainda maior

Conto

Ela vivia com um terrível segredo dentro dela, um segredo que a atormentava e a consumia dia após dia, noite após noite durante várias décadas. Esse segredo era tão terrível que desde que ela deixara o seu país, cinco décadas atrás, o segredo morrera ali, ou melhor, afogara-se dentro dela, vivendo no seu subconsciente como um veneno que se alojasse tão profundamente que nenhum médico no mundo o conseguiria extrair mas que era capaz de a ir consumindo lentamente.
Tinha pouco mais de vinte anos quando resolveu tomar uma decisão da qual só mais tarde se veio aperceber de todas as enormes consequências. A primeira consequência foi viver com um segredo com o qual teve de se habituar a viver como um fardo que não podia descarregar em lado nenhum. Embora dentro dela persistisse a ideia de que, na verdade, nunca tinha feito nada de tão terrível, não se permitia discutir o assunto com ninguém, temendo sempre perder as relações de amizade que conseguira criar e, pior do que isso, temia perder o seu marido. Infelizmente, acabaria por perdê-lo, por força do destino, ou melhor, por força de um ataque cardíaco. Contudo, esse mesmo destino, permitiu-lhe viver momentos de uma felicidade maravilhosa. Várias vezes se chegou a censurar por ter tido momentos tão felizes. Achava que não os merecia muito embora também não fosse do género de pessoa para se auto-flagelar. Com o tempo, com a influência do amor e com as influências religiosas do marido e da família do marido, ela aprendeu também a amar, a partilhar e, acima de tudo, a perdoar. Esta era uma palavra que ela sempre pronunciava a custo: perdoar. Cada vez que a pronunciava, sentia que não lhe pertencia essa palavra. Ela nunca lhe seria dirigida porque ela havia ultrapassado as barreiras do mundo humano que lhe permitiam estar no mundo dos “perdoáveis”.
Certo dia, uns senhores de fato e gravata, com ar solene e formal, apareceram-lhe em casa e na vida que havia conquistado durante cinco décadas, apresentando-se como funcionários do Departamento da Justiça. Ela sabia quem eles eram. Havia esperado por eles durante décadas sempre com o coração apertado. Eram aqueles que vinham cobrar o seu passado. Eles informaram o que ela já imaginava, que tinha de deixar o país que a acolhera depois do seu passado terrível, onde tinha encontrado o amor e o perdão. Aceitou a deportação, afinal de contas já tinha tido de aceitar a maior privação de todas que havia sido privar-se do seu marido, por via da sua morte. A deportação não podia ser pior. Mostrou-se calma e serena. Voltou a agradecer a Deus, como já fizera em ocasiões anteriores, tudo o que Ele fizera por ela e a muita felicidade que lhe havia permitido ter. Talvez fosse a hora de voltar ao seu país e fazer as pazes com o seu país e com a sua família. Sem dizer nada à família do seu falecido marido, fez as malas nos dias seguintes à visita dos senhores do Departamento de Justiça e comprou o bilhete de avião de volta ao seu país. Contariamente ao que havia pensado, aquele acontecimento tão temido da descoberta e divulgação do seu sagrado segredo, provocou-lhe uma enorme tranquilidade. Nos dias anteriores à partida, as lembranças iam passando pela sua mente como suaves penas ao vento que vão pousando sobre a terra. Descobrira que muita gente afinal lhe perdoava o que ela julgava imperdoável, gente que lhe havia enviado mensagens de compaixão. Descobrira que o que mais magoava agora aqueles que lhe eram mais chegados era o facto de ela nunca ter confiado neles a ponto de lhes confiar o seu segredo e não o que realmente havia feito de terrível no seu passado. Afinal de contas, o que havia ela feito de tão mau e tão terrível que não pudesse nunca mais contar a ninguém, quando tinha pouco mais de vinte anos?
Nunca se importara muito com ideologias. Era jovem e importava-se mais com o seu futuro do que com qualquer outra coisa na vida. Tinha a profunda convicção que o trabalho actual que tinha naquela fábrica não a levaria a lado nenhum. Queria mudar e surgiu a oportunidade de ser guarda num campo de concentração nazi. Sabia que aquilo era mau, mas entendia que não tinha nada que ver com ela, aliás como viria a referir, nunca se afiliou no partido nazi. Era forte interiormente e sabia fechar os olhos quando era necessário, como tantos outros. Pois bem, não faria mal a ninguém e fecharia os olhos a tudo o que fosse cruel e mau. Com certeza havia uma razão maior para tudo aquilo, uma razão que ela não entendia porque nunca se preocupara com “essas coisas” mas que gostava de acreditar que era a favor de um bem maior. Isso era o máximo que ela pensava “nessas coisas”. Ela fazia o seu trabalho, sem querer saber o que se passava dentro daquele campo de concentração. Tinha a seu cargo ferozes cães que ela sabia tratar com cuidado, com mãos fortes, e levava os prisioneiros com ar aterrado nas suas marchas. Assim o fez durante quase um ano, altura em que o campo de concentração foi libertado pelos inimigos.
Quando tudo o que havia vivido com relação ao campo de concentração já era passado, quando havia mudado já de país, quis o destino que conhecesse um judeu, refugiado do holocausto, cujos pais haviam sido mortos em campos de concentração como aquele em que trabalhara, que seria o grande amor da sua vida. Apaixonaram-se e ela, de alguma forma, deixou-se embriagar pelo próprio destino. Casou-se com ele e manteve o seu segredo. Poucos o saberão dizer porque ninguém o presenciou e todos sabem que ela jamais divulgaria esse facto, mas a verdade é que há quem acredite que o seu marido sabia do seu passado e que a havia perdoado. Esse perdão teria, segundo essa versão, sido a sua grande salvação. Esse perdão terá mudado a sua vida. Ela sempre soube que havia algo mais importante do que ideologias, do que guerras, nazis, comunistas, socialistas, e outros do género e quando conheceu o seu marido, alguém com todas as razões para a odiar que a terá perdoado do fundo do coração porque a amava, a sua vida mudou. Juntos terão guardado este segredo e terão vivido momentos de grande felicidade. Dizem testemunhos dos vizinhos que eles viviam como numa ilha à parte do resto do mundo. Dizem que os dois caminhavam juntos, ele agarrava o braço dela e seguiam orgulhosos e alegres nos seus muitos passeios já que viviam uma vida modesta e não tinham carro. Note-se, no entanto, que o perdão do falecido marido, segundo apontam aqueles que acreditam nesta versão, não terá surgido sem discussões e momentos difícies na relação entre a ex-guarda de campo de concentração nazi e o judeu refugiado do holocausto e cujos pais terão morrido às mãos da infernal máquina de guerra nazi. Mas, segundo consta, o amor terá vencido sobre tudo o resto e o segredo perante o resto do mundo terá sido a melhor maneira dos dois viverem felizes neste mundo sempre pronto a julgar e dificilmente pronto a perdoar. Neste caso, terá bastado o perdão de uma só pessoa, para mudar a vida da outra.

Fim

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© Gonçalo Coelho