03/04/2006

Relato da Batalha de Borodinó no tempo da Invasão da Rússia pelas tropas napoleónicas (Extracto do Livro Guerra e Paz de Lev Tolstói, Livro III, 39)



Sem dúvida uma das mais intensas e mais brilhantes descrições literárias de sempre da guerra: “Várias dezenas de milhares de mortos, envergando as mais diversas fardas e nas mais variadas posições, estavam espalhados pelos campos e prados pertencentes aos senhores Davídov e aos camponeses da coroa, nos mesmos campos e prados em que, durante centenas de anos, faziam as suas colheitas e levavam a pastar os seus gados os camponeses das aldeias de Borodinó, Górki, Chevardinó e Semionovskoe. Nos postos médicos, numa área de quatro jeiras, a erva e a terra estavam empapadas de sangue. Multidões de feridos e de não feridos de vários destacamentos, com o terror estampado nas caras, arrastavam-se, de um lado, de volta a Mojaisk, e, do outro, de volta a Valúevo. Outras multidões, extenuadas e famintas, seguiam em frente sob o comando dos chefes. Outras permaneciam nos lugares e continuavam a disparar. Por sobre o campo todo, havia pouco tão belo e alegre com o seu brilho de baionetas e o sol matinal coado pelo fumo, pairava agora uma bruma de humidade e um estranho cheiro ácido a salitre e a sangue. Acumularam-se as núvens e começou a chuviscar sobre os mortos, sobre os feridos, sobre os assustados, sobre os extenuados, sobre os hesitantes. A chuva parecia dizer: “Chega, homens, chega. Parai... Tomai juízo. O que estais a fazer?” Todos, extenuados, sem comida e sem descanso, de ambas as partes, começavam a sentir as mesmas dúvidas: valeria a pena continuarem a exterminar-se uns aos outros? E em todos os rostos era visível a hesitação, e em cada alma se levantava a mesma pergunta: “Porquê e por quem tenho de matar e ser morto? Matai quem quiserdes, fazei o que quiserdes, mas eu não quero mais!” Até à noite, esta ideia amadureceu na alma de cada um. As pessoas podiam, a qualquer momento, aterrorizar-se com o que estavam a fazer, largar tudo e fugir ao deus-dará.”
© Gonçalo Coelho